8 de janeiro de 2021

Meu lado mais negro

Eu devia ter dado mais atenção ao homem que veio pregando a palavra de Deus para mim. Estava triste e desiludido após lutar na guerra Anglo-Francesa. Perdi muitos amigos, perdi minha família. Tornei-me um ébrio na vida e estava sempre a lamentar. Comecei a trabalhar de capanga para um mercador de escravos, apenas para dar vazão à minha raiva. De uma hora para outra me tornei um homem cruel. Batia em pessoas inocentes, arrumava confusão, matava por qualquer bobagem, vivendo uma vida de luxuria. Quando veio aquele velho pregador falando de Deus, dizendo que dava tempo de me arrepender de todos os meus pecados eu cuspi na cara dele. Sob o efeito do vinho eu fiquei irritado e blasfemei contra Deus e todos os anjos. Deve ser por isso que eu sofri uma maldição terrível. A maldição que vou relatar aqui.

O ano era 1789 e estava me sentindo muito estranho naqueles dias. Vinha tendo pesadelos sobre demônios, monstros alados, sobre sacrifícios humanos. Em alguns eu realizava sacrifícios, em outros eu era o sacrificado em cultos bárbaros. Mas sempre havia uma mulher que eu não conseguia distinguir o rosto e nem o papel dela nos sonhos. Estava sempre com a imagem desfocada. Certa noite em um desses pesadelos eu estava para ver seu rosto quando acordei suando frio. Decidi ir até uma taverna para tomar algo, ficar acordado. Dormir era um erro. Sempre os mesmos pesadelos. Foi quando eu vi uma belíssima mulher sozinha em uma mesa no canto. Cabelos negros e a pele incrivelmente pálida, mas com aspecto saudável. Os olhos negros da cor dos seus cabelos. Lábios vermelhos como sangue. Ela exalava sensualidade, mas apesar disso nenhum homem olhava para ela. Parecia até que evitavam olhar em sua direção. 

Até que ela sorriu para mim. Sentindo-me hipnotizado fui até onde estava. Conversamos e bebemos por várias horas. Logo estávamos na rua nos beijando de forma selvagem enquanto caminhávamos para minha casa. Nós fizemos amor como nunca eu havia feito antes. Depois foi escuridão. No outro dia acordei gritando: “É ela! A mulher de cabelos negros é a mulher dos meus sonhos.” Olhei para os lados e não a vi. Alias, não havia nem sinal de que ela tinha estado ali. Só a dor de cabeça pelo excesso de cerveja. Fui até a janela e vi que o sol estava alto, percebi que já devia ser meio dia. Senti uma dor nas costas, passei a mão e vi que estava toda arranhada. Não havia sido um sonho, afinal. Ela realmente esteve ali. 

Saí procurando ela pela cidade. Perguntei na taberna se alguém sabia de onde vinha, onde morava, mas todos só me respondiam que nunca haviam visto uma mulher parecida e me olhavam como se fosse um louco. Com o passar dos dias quando não aguentava mais aquela paranoia eu decidi mudar de vida. Deixei de lado a espada. Não queria mais saber de sangue e maldades. Fui viver em um vilarejo bem pacato como fazendeiro, no extremo Norte da Escócia. Quem sabe mudando de vida eu conseguiria ter um sono mais tranquilo. Foi ai que tudo piorou.

 Comecei a ter noites de sono mais selvagens. Sentia-me belo, caótico, indômito, mal, selvagem e temido. Todos os dias durante uma semana eu tinha esses sonhos em que me via como um caçador implacável, onde adorava sangue. O mais estranho era que eu acordava nu no meio da floresta e com estranhas marcas no corpo. Isso durou uma semana. 

Nas semanas seguintes eu comecei a acordar na minha cama e meus pesadelos mudaram. Sonhava que estava em um julgamento. O tribunal era composto por anjos. O juiz era o arcanjo Miguel e o júri eram os outros arcanjos. Gabriel, Uriel, Rafael, Jofiel, Chamuel e Zadkiel. O advogado de defesa era o anjo Traumiel. O promotor era Lúcifer. O restante do publico eram celestiais de outras castas. Ishins, Ofanins, Querubins. E eu sempre era condenado a passar a eternidade sofrendo os horrores do inferno. Aí eu acordava em minha cama, encharcada pelo meu suor.

Passavam algumas semanas e voltavam os pesadelos onde eu era o caçador, o pecador, quando eu cometia os crimes pelos quais ia ser julgado. E nesses dias eu voltava a acordar nu na floresta. Sentindo o cheiro e o gosto de sangue em mim. E eu gostava do sabor e aroma. Mas daí vinha à sensação de vergonha, arrependimento de todos os pecados e matanças que já havia cometido, na vida real e nos sonhos.

Certa noite em que eu estava novamente caçando, nos sonhos, uma multidão me enfrentou com tochas, lanças, paus e pedras. Conseguiram me atingir com uma lança e eu fugi. Quando acordei no meio da mata, estava sangrando com uma perfuração nas costelas. Escutei gritos dos habitantes do vilarejo sobre uma fera que estava solta na floresta nas noites de lua cheia, uma fera que era faminta por sangue humano. 

Ali que eu fiquei sabendo o porquê de tantos pesadelos infernais. Percebi que não eram sonhos, mas a triste e cruel realidade. Eu estava sendo punido pelos meus crimes, meus pecados. Meu lado mais negro fora despertado. Havia me tornado um lobisomem. Estava condenado a caçar, matar, uivar para a lua e tirar pulgas, até alguém enfiar uma bala de prata no meu cérebro.

Guilherme Palma

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