7 de abril de 2010

Nascido em 5 de julho

por Fernando Tucori

Era uma manhã gostosa aquela de 5 de julho. Verão, sim, o grande verão em que tudo começou. Ninguém dava a mínima praquele sujeito que vestia roupa cor de rosa e sorria meio de lado. Tudo ele fazia de lado, te olhava de lado, andava de lado, falava de lado. Assim, a gente deixou ele de lado e por muito tempo, foi do lado que ele ficou. Do lado de fora do Sun Studios, de Sam Phillips.
Ele chegou naquela manhã com uma desculpa diferente. "Hey, cats!", ele disse. "É aniversário de minha mamãe, sabe? Queria dar um presente especial pra ela". Aí, virou insanidade. Ele sacou, sabe lá de onde, uma foto da mãe dele. Uma vaca gorda que mal cabia na foto. Engordurava as mãos pegar naquilo, como os pretzels do Moe. Foi o Scotty quem puxou o coro. "Quanta mãe você tem rapaz!".
Todos os outros começaram a rir e não pararam por pelo menos uns quinze minutos, tempo em que o rapaz variou da indiferença forçada ao desdém medroso como uma moeda girando no ar. Ele ficou puto, a gente via, mas quando ele disse a frase mágica, uma fagulha piscou ali no meio.
"Eu vou até a farmácia comprar o remédio dela e na volta, passo aqui, ok?". Era muita pretensão e muita gente achou engraçado, de verdade até o velho Johnny dizer, num tom estranhamente amigável, um "espera um pouco, filho". Se você olhasse pro rosto de Johnny naquele momento, saberia, como eu soube, que ele via no garoto alguma coisa especial. Um dom, talvez.
Sei lá, o Johnny era um crioulo doido. Diziam que ele tinha parte com o diabo. Eu diria que ele era um anjo, mas, assim que suas mãos tocavam as cordas de Blanche Dubois, sua guitarra branca, o diabo estava em seu corpo.
"Pega mais esses trocados e compra mais remédio pra sua mãe. É remédio pra emagrecer?" e o rapaz assentiu com a cabeça. "O pessoal da Sun acha que sua mãe é uma pessoa legal, mas tem que tomar cuidado com o peso. Então, compra mais isso de remédio pra ela e na volta passa aqui que a gente deixa você gravar seu presente".
O sorriso de lado do garoto parecia um boxeador na lona, lutando pra se levantar. E levantou: "Obrigado, senhor" e olhou para Johnny com uma expressão de verdadeiro amor. O verdadeiro, nem mais, nem menos. E bateu a porta ao sair. Voltou para pedir desculpas. Tive a impressão que ele deu uns pulos atrás da porta e depois sumiu.
"A gente vai gravar com ele, Jo-jo?", coçou-se Charlie. "A gente vai botar fogo em tudo, meu chapa. Você vai ver". Foi naquele momento que Johnny abriu o sorriso inteiro e esbugalhou os olhos numa expressão maníaca. Ninguém entendeu muito o que ele quis dizer com aquilo, mas todo mundo sacou que ele sabia o que estava fazendo. Ou isso ou ele queria comer a mãe gorda daquele moleque sebento, o que eu preferia não considerar tão sóbrio assim.
De qualquer modo, ninguém estava fazendo nada mesmo. Pelo menos, era um motivo pra tocar. Enquanto o moleque não voltou, Johnny não sossegou. Quando o moleque voltou, Johnny nem olhou pra cara dele. Seus olhos estavam costurados nos pacotes que ele trazia na mão. "Ele embrulhou em dois pacotes separados?" Johnny foi direto ao ponto.
O rapaz ficou meio atordoado, mas respondeu que sim. Johnny olhou para o alto e sorriu. "Qual é o que a gente pagou?". O rapaz mostrou o menorzinho. "Eu não pensei que fosse tão caro, mas, sabe...? Acho que vou ficar com ele pra mim". Ao dizer isso, Johnny abriu o pacote enquanto sorria pro garoto. "Vamos lá, vamos tocar".
É numa hora dessas que um homem pode ficar vesgo. Um lado dele queria olhar para o remédio que tinha perdido que tinha vindo fácil e agora, ia embora mais fácil ainda. O outro lado, porém, olhava fixamente para a oportunidade de gravar a música de sua mãe. Quando Charlie beliscou a primeira corda do baixo, ele acordou e seus dois olhos olhavam, juntos, para o estúdio até repousarem no microfone à sua frente. Johnny, o reverendo, distribuía hóstias aos fiéis à causa.
Ele sabia. Ele sempre soube. A mãe de Johnny, todo mundo sabia, era gorda como uma porca. Johnny sabia que só existe um remédio que médico manda mulher gorda tomar: anfetamina. E cada um ali, naquele momento, sentia duas bolinhas daquela descendo pela garganta. Duas bolinhas e duas canções e, depois disso ninguém mais se encontrou. Depois disso, as bolinhas bateram. Duas músicas country de merda. E o moleque mal tinha cantado.
Ele não ia embora se não gravasse as músicas dele e ninguém mais na banda se encontrava. Ninguém colocava mais nota sobre nota. Era uma barulheira sem sentido. Lixo. Se eu tivesse tomado bolinha talvez entendesse, mas não. Aquilo não fazia sentido nenhum pra mim, como não faria sentido para boa parte do mundo civilizado.
O moleque lá meio em pânico via o tempo passar. Johnny parou tudo e pediu pro garoto puxar a música dele. Ele começou um country de caminhoneiro no violão que Johnny interrompeu. "Em vez de tentar assim", disse Johnny batendo os pés como o pulso de um coração, "vamos fazer assim", e tornou a bater os pés, desta vez como um trem naquele momento da marcha em que você sabe, ele não vai mais parar. Era selvagem, era louco e era rápido. E Johnny não parou.
Acho que o moleque percebeu que ele não ia parar e decidiu que era melhor seguir e fazer do jeito dele do que não fazer de jeito nenhum. Então, ele correu atrás de Johnny e correu, e correu até que, num momento, os dois estavam juntos. Acho que ele queria impressionar Johnny, mas a verdade é que ele cantou como um negro. Cantou como Johnny e continuou cantando assim, freneticamente, até um achar um jeito dele. Ernie, que de bobo nunca teve nada, já tinha ligado o gravador faz tempo.
No fim da tarde, Sam Phillips ia ouvir essa fita e mandar todo mundo correr atrás do moleque. Ninguém lembrava o nome dele. Só Johnny. "Eu me lembro". No fim da gravação, aquela mão negra e aquela mão branca, unidas, quando Johnny disse: " Qual seu nome, filho?". O rapaz levantou aquele sorriso de lado e olhou pra Johnny de lado quando disse o que Johnny repetiu para Sam Phillips naquela noite, no fim do expediente. "O nome é Elvis... Elvis Presley".
  1. Publicado no site http://www.rockwave.com.br/ dia 09 de março de 2006.

“Ouvi dizer que você sabe uma historinha à respeito de Elvis Presley. Algo do tipo: "O rock’n’roll só nasceu porque Elvis era o traficante de anfetamina número um da Sun Records... Isso é verdade?"

Lux Interior: "Sim... Um cara chamado Rooster era motorista de táxi da Sun Records me contou isso quando nós gravamos no estúdio de Sam Phillips, nos 70. Ele tinha sido motorista na época de Elvis. Segundo Rooster, Elvis era um cara bem esquisito, que usava roupas cor-de-rosa. Ninguém dava tempo de estúdio pra ele à menos que ele trouxesse algumas pílulas de dieta da mãe dele, que eram anfetaminas. Aí ele distribuía essas anfetaminas e deixaram ele gravar. Talvez ele fosse gravar uma música country, mas os músicos tinham tomado as anfetaminas e, ao invés disso, começaram a tocar aquela música selvagem."

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