5 de agosto de 2009

Jornalista, cozinheiro ou jagunço


* Por Trajano Jardim

O Supremo Tribunal Federal decidiu, em 17 de junho, que, para o exercício da profissão de jornalista, não é obrigatório o diploma universitário. Com essa resolução, qualquer pessoa poderá exercer o jornalismo, mesmo que tenha apenas curso primário. Pior ainda - as empresas poderão contratar, para cargos como o de repórter ou editor, os seus apadrinhados, compadres, protegidos políticos, independentemente do preparo da pessoa para a responsabilidade dessas funções.

Os votos proferidos pelos iluminados senhores da Suprema Corte são uma demonstração de desconhecimento total acerca da profissão de jornalista e do que seja liberdade de expressão. A liberdade de expressão é exercida pelos detentores do oligopólio da mídia, em todos os seus cruzamentos ilegais. O exercício da profissão de jornalista é um direito inalienável daqueles que têm a formação acadêmica para exercê-la, tal qual o senhor Gilmar Mendes e seus companheiros de magistratura, que só podem exercer a advocacia se tiverem formação específica.

A regulação da profissão, ao contrário do que argumentaram os Excelentíssimos Senhores iluminados ministros da Suprema Corte, nunca foi obstáculo a qualquer pessoa, nem mesmo pseudo-literatos que se arvoram em escritores de coluna de jornal. A prova disso é que 90% do conteúdo jornalístico, nos meios de informação, não são elaborados por profissionais do ramo. O questionamento que se apresenta é sobre os profissionais que produzem a notícia.

O que as entidades discutem e defendem é que, para exercer a profissão de jornalista, o indivíduo tenha formação teórica e prática. Teoria que dê, ao profissional, conhecimentos básicos de filosofia, sociologia e ética, além de uma visão humanista do mundo e do meio em que ele vive; prática das técnicas de redação jornalística, de reportagem e de entrevista; princípios de responsabilidade social, compromisso com a verdade, respeito à fonte, compreensão de cidadania e independência de opinião. Todos esses pressupostos são básicos e o jornalista, da mesma forma que o advogado, o médico e outros profissionais, só os consegue no curso de formação.

A decisão do STF revelou o caráter de classe da Justiça brasileira. Não acreditamos que esses senhores, detentores de diploma, que se auto-intitulam cientistas do Direito, donos da verdade e possuidores do conhecimento iluminado dos deuses do Olimpo, confundam liberdade de expressão com direito do exercício da profissão.

Tem razão o senhor Gilmar, relator do processo, na sua afirmação de que o diploma não evitaria danos a terceiros. Da mesma forma, o diploma não livra a sociedade de advogados e juízes que se vendem ao poder econômico. Mas ele se equivoca ao dizer, no seu inusitado voto, que “as notícias inverídicas são grave desvio da conduta e problemas éticos que não encontram solução na formação em curso superior do profissional”. Se assim pensa o magistrado, ele advoga o determinismo na conduta do indivíduo e nega o papel da família e da escola na formação do sujeito.

Mendes lembrou que o Decreto-lei 972/69, que regulamenta a profissão, foi instituído no regime militar e tinha clara finalidade de afastar, do jornalismo, intelectuais contrários ao regime. Isso não passa de um subterfúgio de quem descende de latifundiários e jagunços que, no seu conjunto como classe, formou a argamassa social que legitimou o golpe militar de 1964. A ditadura afastou, perseguiu e assassinou profissionais jornalistas que se colocaram em defesa da democracia e contra o arbítrio, como Herzog, Bomfim e tantos outros.

Sete ministros acompanharam o voto do relator, descambaram para a posição subserviente do presidente do STF aos barões da mídia. O relator Mendes nunca negou sua aversão aos jornalistas e órgãos da imprensa independentes. Estes, que têm desnudado as práticas lesivas, à sociedade, do senhor Mendes e sua família, tanto do ponto de vista jurídico quanto do cidadão Gilmar, nas suas escaladas pelo Mato Grosso. Nesse sentido, o que disse Lalo Leal, em artigo publicado na Carta Maior (9/7), tem fundamento: os nobres julgadores “mostraram em seus votos desconhecer a matéria em julgamento”.

Com resquícios de preconceito, Gilmar Mendes diz, em seu voto, que a formação em jornalismo é importante para o preparo técnico dos profissionais e deve continuar, nos moldes de cursos como o de culinária, moda ou costura, nos quais o diploma não é requisito básico para o exercício da profissão.

Mais uma vez, o ministro erra de forma deliberada. A formação de jornalista requer que o aluno passe por cerca de 200 princípios curriculares - filosóficos, sociológicos, éticos, morais, antropológicos e técnicos. Vale perguntar, sem qualquer desmerecimento, se, no curso do senhor Gilmar Mendes, na escola de Direito de sua propriedade, o aluno tem essa gama de estudo.

Nesse festival de hipocrisia a que assistimos por força do diploma e das nossas entidades de classe, pudemos sentir de perto o caráter de classe da Justiça brasileira. Esse caráter de classe está inserido em cada voto dos senhores ministros, haja vista a comparação feita, pelo relator, em relação à profissão de jornalista e a outras, justamente aquelas que agregam, em sua maioria, o estrato da sociedade formado pelas camadas mais populares.

Temos o maior respeito por todas as profissões. Cada uma delas é importante no contexto produtivo e de crescimento do nosso país, quando exercida com ética e respeito pelo outro e suas diversidades. Diferentemente do senhor Gilmar Mendes, que, com as benesses do dinheiro público, pode, até mesmo, levar a esposa para comprar cosméticos numa linda manhã de sol de domingo usando a estrutura do Estado - carro oficial, seguranças e outros quejandos.

Perdemos uma batalha, mas não perdemos a guerra. Sabemos combater o bom combate. Embora a grande mídia só abra espaço para os que são contra a obrigatoriedade do diploma (só o Jânio de Freitas teve espaço), não vamos ensarilhar nossas armas. Apesar de insistirem, as ideias plutocratas irão para o monturo das excrescências da lata do lixo. Seremos sempre jornalistas, cozinheiros, marceneiros, psicólogos, operários, nunca jagunços.

* Trajano Jardim é Jornalista e professor

FONTE: FENAJ

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